Ao declarar a ausência do pecado original em Maria, o dogma celebra a
vitória de Deus sobre os poderes e principados deste mundo, pela vinda e
existência desta mulher. Em sua existência, pela graça de Deus rompe-se o
domínio do mal. Embora não a afastasse dos sofrimentos deste mundo, a graça lhe
foi dada livremente desde o primeiro momento porque ela foi destinada a ser a
mãe de Jesus. Essa graça permitiu que ela vivesse em constante união com Deus
desde o inicio. Sua resposta a Deus na fé trouxe Cristo ao mundo e, por
intermédio de Cristo, o pecado perde seu poder sobre o mundo.
Ao afirmar a Imaculada Conceição de Maria, professamos que, em uma
mulher; Maria, a Mãe de Deus, o significado último de toda realidade material e
espiritual já se realiza. Professamos que este estado de frustração e
alienação, de estar enredado nas estruturas pecaminosas da sociedade, em Maria
chegou ao fim. Nela percebemos o que ser redimido. O símbolo do pecado original
indica um mundo infiel. O símbolo da Imaculada Conceição mostra que sequer a
pecaminosidade acumulada do mundo supera o desejo divino de salvar. É,
portanto, símbolo escatológico, forte fundamento para a esperança cristã e
ímpeto poderoso para um compromisso cristão com a justiça em um mundo de
violência e exploração global.
A nível pessoal, nossas vidas entrecruzam-se com a dor e ansiedade e às
vezes com a sensação de insignificância e futilidade, em especial quando
encontramos a morte. O símbolo da Imaculada conceição nos faz lembrar que a
vida toda é fundamentalmente boae significativa. Encontrará, pois, sua
realização na vida final do Reino de Deus.
Nossa linguagem e visão do mundo, nossos valores, estilos de vida e
preferencias já estão moldados e formados pelos sistemas socioeconômicos e
políticos que controlam nossas vidas. Quase sempre, a sociedade deixa os frutos
da produção disponíveis só para os ricos. As leis tendem a favorecer a
estabilidade e a congelar a sociedade em favor dos ricos e poderosos; e a
cultura apoia tais estruturas econômicas e politicas injustas. A religião
também é usada para legitimar e apoiar essas estruturas injustas.
É necessário um salto maior da imaginação para entender a questão
nuclear. Jonathan Schell1 observa que há aproximadamente vinte mil
megatons de explosivos nucleares em existência agora e que um só megaton
equivale à produção explosiva de oitenta Hiroshimas. A imaculada Conceição é símbolo que nos convoca
para a ação política e escatológica e nos lembra que não podemos assumir uma
posição neutra. É símbolo escatológico que indica para onde vamos e nos oferece
a esperança de que chegaremos.
A Imaculada Conceição: sua importância como arquétipo
Um arquétipo é “o centro essencial
de um padrão de símbolos universais” que nos vêm de nosso inconsciente coletivo
e lida com “tipos” arcaicos ou “primordiais, isto é, com imagens universais que
existem desde tempos remotos”.2
O símbolo da Imaculada Conceição indica a pureza de realidade e consciência, anterior ao “conhecimento do
bem e do mal”, realidade anterior ao pecado e ao sofrimento e sem eles,
presente em todos nós, no centro de nosso ser. É no centro que experimentamos a
presença graciosa e divina de Deus em nós. Esse é nosso mais verdadeiro eu,
nossa união com todas as coisas. É uma realidade que nós possuímos “no começo”,
e que não cessa de existir. Apenas perdemos de vista, pois nossa unidade
original permanece. Fica em pelo menos um ponto em nós que é livre e uma grande
descoberta. O mistério da Imaculada Conceição está sobre nós, pois em Maria
descobrimos nosso verdadeiro eu.3 É essa a importância da Imaculada
Conceição como arquétipo. Entretanto, não é este verdadeiro eu que costumamos
experimentar. O mito da “queda” sugere o fato espantoso e inexplicável de que
estamos alienados desse verdadeiro eu. Para despertar a
presença de nosso verdadeiro eu, o falso eu, que nos mantém na superfície da
realidade, precisa morrer. Este despertar é, na verdade, uma recuperação, pois
o verdadeiro eu está sempre ali. Nesse despertar, descobrimos nossa unicidade
com Deus e em Deus com toda realidade. Estar atento a essa unicidade é o que
Thomas Merton denomina contemplação:
Estando atento, aprendendo a ouvir (ou recuperando a capacidade natural
de ouvir que não pode ser adquirida, assim como não se aprende a respirar), podemos
nos descobrir mergulhados em felicidade tal que não dá para explicar; a
felicidade de estar unido a tudo no campo oculto do amor, para o qual não há
explicação.
Faz parte da própria necessidade de
nossa existência estar em Deus. Essa dimensão contemplativa de nossa existência
está presente também quando nunca aludimos a ela. A oração contemplativa traz à
superfície de nossas vidas essa percepção fundamental pela qual tomamos
consciência de nós mesmos e de todas as coisas em Deus. Com muita frequência, só
na morte as pessoas chegam a esse pleno despertar do verdadeiro eu. Por sermos
quase sempre tão excessivamente racionais, compelidos a realizar e controlar,
não damos atenção à divina presença dentro de nós. Maria, que nunca perdeu de
vista a divina presença dentro de si, é nosso modelo de contemplação. Ela
também sabia que a graça de Deus é superior ao poder do mal reinante e que, por
causa da bondade do superabundante amor divino, o mundo nunca está sem a
presença e a compaixão de Deus. Maria sentiu o que é crescer em graça e
contemplação, vivendo em gozo extasiado de sue Deus e da criação divina.
Em Maria, vemos o destino da Igreja. Como a Virgem de Israel, Maria é
separada do mundo, reservada para Iahweh. A virgindade de Maria e sua Imaculada
Conceição estão em harmonia aqui. Em Maria concebida sem pecado, vemos o que
devemos ser. Ela nos lembra que a santidade é possível. Na radicalmente santa
Virgem Maria, também se vê o destino da Igreja que deve ser “sem mancha, sem
ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27) até todos
sermos “um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28).
Os 150 Anos da Definição do Dogma4
Em 8 de dezembro de 2004, a Igreja celebrou os 150 anos da definição do
Dogma da Imaculada Conceição de Maria, mas o que significa esse dogma? Ele
professa que Maria Santíssima foi concebida, no seio da Santa Ana, sem o pecado
original. Que é pecado original afinal de contas? Na criança, não é um pecado
propriamente dito (pois todo pecado propriamente dito é consciente e voluntário),
mas é a ausência dos dons que os primeiros pais receberam no paraíso e
perderam.
Pois bem, a fé ensina que Maria não foi concebida como as demais
criaturas, privada da graça, mas recebeu-a desde o inicio de sua existência,
pois ela foi chamada a ser o tabernáculo de Deus feito homem. Convinha que a
Mãe do Verbo encarnado jamais tivesse experimentado o jugo do pecado.
Quais os fundamentos de tal afirmação?
Não a
encontramos explicitamente na Bíblia, pois ela não foi escrita para tratar de
Maria Santíssima e sim de Jesus Cristo e sua obra salvífica. Maria só entra aí como Mãe de Jesus. São João
nos diz que mesmo a respeito de Jesus nem tudo foi escrito, pois o mundo não
conteria os livros daí resultantes (Jo 21, 24 s).
De qualquer forma, a Bíblia afirma que Maria é cheia de graça e a
enaltece acima de todas as mulheres (Lc 1, 28-47 s). Quanto ao povo de Deus em
sua piedade, ao longo da história cristã, e a Liturgia, tanto no Oriente como no Ocidente, desde os primeiros
séculos se compraziam em celebrar a santidade e pureza de Maria.
No século VIII celebrava-se a festa litúrgica da Conceição de Maria aos
8 de dezembro ou nove meses antes da festa da Natividade de Maria (8/9). No
século X a Grã-Bretanha celebrava a Imaculada Conceição de Maria. Os teólogos
porem ficava à margem dessa propagação da piedade; parecia-lhes que a tese da
Imaculada Conceição de Maria era incompatível com a da universalidade da
Redenção e a da santidade singular de Jesus. Daí as declarações em contrário de
Santo Anselmo de Cantuária (+1109), São Bernardo (+1153) e São Tomás de Aquino
(+1274).
Finalmente no século XIV o franciscano João Duns Scotus (+1308) formulou
a solução do impasse: pela aplicação antecipada dos méritos de Cristo, Maria
foi preservada das conseqüências do pecado original; ela nasceu portadora da
graça santificante, mas não dos demais dons paradisíacos. Desta maneira foi
remida e salva por Cristo; tudo o que ela tem de bom e belo lhe vem do Senhor
Jesus; a santidade de Cristo fica incólume e proclamada pela santidade de
Maria. Após Duns Scotus foram-se dissipando as hesitações acerca do privilegio
mariano da Imaculada Conceição a ponto que, no século IX a definição solene do
Dogma.
Pio IX atendeu, não para criar mais um Dogma (a Igreja não cria Dogmas),
mas para reafirmar no mundo materialista do século XXIX a presença do
Sobrenatural. Ao Dogma da Imaculada Conceição está associado o da Assunção
corporal de Maria aos céus. Esta é conseqüência daquela; com efeito, se Maria
nunca esteve sujeita ao pecado, não terá
ficado sob o império da morte; seu corpo não se decompôs no sepulcro, mas foi
elevado à glória dos céus. Esta verdade professada desde antigos tempos foi
solenemente definida por Pio XII em 1950 não como novo Dogma, mas para
enfatizar a dignidade do corpo humano após a Segunda Guerra Mundial, que tanto
humilhou e pisoteou esse mesmo corpo. A Assunção nada tem a ver com o titulo de
Co-Redentora; há um só Redentor e Mediador: Jesus Cristo, que quer servir-se
dos homens para realizar sua obra salvífica.
Em conclusão, observamos:
1. Se alguém
quer ser fiel à Bíblia, deve considerar também a Palavra de Deus que não foi
redigida por escrito, mas passou de geração em geração como Tradição
(transmissão) oral. (Jo 20, 30s; 21, 24s e IITm 2, 2).
2. Para distinguir
o que, nessa Tradição oral, haja de válido, a Igreja goza da infalível
assistência de Cristo e do Espírito Santo (Mt 28, 19s; Jo 14, 26; 16, 13-15).
3. A exaltação
de Maria não derroga à grandeza singular de Cristo, mas é fundamentada na
Bíblia e canta o louvor de Cristo como todo belo artefato canta os louvores do
seu artesão.
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1 SHELL, Jonathan.The Fate of
the Earth. New York, Alfred E. Knopf, 1982, p.67.
2 BRENNAN, walter. T. “The Issue
of Archetypes”.In Marianum LII. 1990, pp. 34-35.
3 Veja SHANNON, William.
“Original Blessing: The gift of the true Self”. In The Way, janeiro de 1990,
pp. 37-46.
4 ESTÊVÃO
BETTENCOURT, OSB – Arquidiocese do Rio de Janeiro
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