Enquanto Ele assim falava, uma mulher levantou a voz do meio
do povo e disse-lhe: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te
amamentaram!” Mas Jesus replicou-lhe: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem
a palavra de Deus e a guardam” (Lc 11, 27-28).
Num primeiro momento, as palavras de Jesus que acabamos de
escutar poderiam dar-nos a impressão de contrariarem a devoção a Nossa Senhora.
O Senhor parece querer dizer-nos: “Não louveis o homem; não é o parentesco de
sangue que conta, mas somente o cumprimento da palavra em unidade de espírito e
de coração”. Se, porém, ouvirmos essas palavras no contexto do Evangelho
inteiro, abrem-se para nós perspectivas novas e surpreendentes que nos permitem
chegar ao próprio fundo do qual brota a devoção a Maria e às orientações que
daí decorrem.
Maria, a “Profetisa”
Em São Lucas, a frase de Jesus ao declarar bem-aventurados
os que ouvem a palavra de Deus (Lc 11, 28) corresponde exatamente à saudação de
Isabel: “Bem-aventurada és tu que creste” (Lc 1, 45). E essa íntima vinculação
ainda se vê reforçada por dois versículos em que o Evangelista diz: Maria
guardava todas essas palavras, meditando-as no seu coração (Lc 2, 19 e 51);
Nossa Senhora relacionava-as, ponderava-as e aprofundava no seu significado.
São Lucas deixa claro, assim, que a bem-aventurança daqueles que ouvem a
palavra de Deus e a põem em prática se realiza em primeiro lugar e com maior
profundidade nEla; que Ela é parente do Senhor antes de mais nada pelo coração,
e que, por trazer em si a Palavra de Deus, pôde tornar-se também o trono da sua
Encarnação: “Antes de ser Mãe segundo o corpo, Maria já o era segundo o
espírito”, diz Santo Agostinho.
Nossa Senhora guardava as palavras de Deus no seu coração,
relacionava-as entre si, meditava-as e aprofundava no seu significado. Ao fazer
essa afirmação, Lucas quer apontar Maria como fonte da tradição, mas mostra-nos
também que nEla se tornou visível aquilo que foi durante séculos o mistério de
Israel e que seria a missão da Igreja ao longo de toda a história: ser a morada
da Palavra de Deus, o porto em que essa Palavra encontra abrigo seguro no meio
dos altos e baixos da história, das suas tempestades, das suas vicissitudes, da
sua fatuidade e dos seus vazios e fracassos num sentido ou em outro. Em todos
esses altos e baixos em que nada parece perdurar, é Israel, é a Igreja fiel,
representada em Maria, que guarda a Palavra, que a conserva, difunde e
transmite através da turbulência dos tempos, para que possa reviver e produzir
fruto uma e outra vez.
Maria torna-se assim, no Evangelho de São Lucas, uma
interpretação viva da parábola do semeador e da semente (cfr. Lc 8, 4-18): o
seu coração é a terra fértil e profunda em que a semente pode arraigar. Não se
assemelha ao solo pedregoso e raso, em que as coisas resvalam ou são levadas
pela água, e que só retém o “hoje”. Não é como aqueles em quem os pardais da
inconsciência cotidiana devoram tudo o que poderia penetrar até o coração, nem
traz em si os espinhos da riqueza, das emaranhadas preocupações terrenas, da
afirmação da posse pela posse, que também impedem o acesso às camadas mais
profundas do coração e da existência. Ela é o campo de terra fértil em que a
semente pode penetrar, abrigar-se, deitar raízes e amadurecer. Dá-se nEla esse
processo pelo qual, à medida que as forças da existência se tornam seiva e
alimento da Palavra, a própria pessoa se deixa transformar na semente e assim
se torna Palavra, Ícone vivo, Imagem luminosa de Deus, totalmente moldada pela
sua missão. Por sua vez, essa Palavra adquire nEla uma nova força,
manifestando-se em toda a sua riqueza e diversidade.
Maria guardava a palavra e indica-nos assim o caminho.
Vivemos num tempo em que os corações todos são solo duro e pedregoso em que
resvala tudo o que é profundo, em que os pardais devoram diariamente toda a
Palavra que pretendia chegar ao nosso íntimo, e em que os espinhos da cobiça
pelas riquezas encobrem tudo o que é profundo. Vivemos – mesmo na Igreja –
dominados pela mentalidade imediatista, para a qual só importa o que se pode
fazer e calcular, e que perdeu a capacidade de reconhecer que não é só o que se
pode contar que na verdade conta. A fecundidade profunda, as forças que
realmente moldam e modificam a história, só podem brotar daquilo que amadureceu
por longo tempo, daquilo que tem raízes fundas, daquilo que foi provado e
meditado, daquilo que foi vivido e sofrido. Da mesma forma, a força da Igreja,
a sua capacidade de transformar o mundo, não pode derivar de que, em curto
prazo, promova uma coisa aqui e outra ali; consiste em que nos oferece uma
dimensão interior na qual podemos recolher-nos, para que se faça silêncio em
nós e a Palavra torne a amadurecer e a dar fruto.
Os Padres da Igreja chamavam a Maria a Profetisa. E
“Profetisa” não significava para eles alguém que fizesse obras ou previsões
miraculosas, mas alguém que estava embebido do Espírito de Deus e assim podia
enxergar e dar fruto. Hoje, precisamos deixar que voltassem a dizer-nos isso.
Há entre nós, e em todo o Ocidente, um anelo pela meditação e uma fuga para tudo
o que vem da Ásia, pois o cristianismo parece ter-se reduzido a um mero
ativismo. Mas se apenas tomarmos de empréstimo de maneira imediatista meia
dúzia de “técnicas espirituais” das religiões asiáticas, não será nelas que
encontraremos a esperada profundidade, pois também elas passarão a ser meros
instrumentos do nosso egoísmo, instrumentos que nos servirão apenas para tornar
a nossa ânsia de eficácia ainda mais febril.
Convém que, no meio deste nosso ativismo, não esqueçamos que
também o cristianismo tem a sua meditação, o seu centro meditativo,
representado pela atitude receptiva da Mãe do Senhor. Novamente é Ela quem deve
mostrar-nos o caminho para a meditação cristã, para o recolhimento da nossa
vida nesse silêncio fecundo do qual procede à verdadeira força.
Foi por isso que nós, os bispos [da Alemanha], dirigimos uma
instrução aos fiéis deste país por ocasião do mês de maio. Parecia-nos
importante que voltássemos a aprender o elemento mariano do cristianismo, essa
capacidade concentrada de ouvir que se torna um campo fecundo para a Palavra.
Foi por isso que animamos os fiéis a voltarem a rezar orações marianas, como
por exemplo, o terço, tão desacreditado. Afinal, rezá-lo quer dizer
precisamente que renunciamos ao nosso ativismo, que renunciamos a inventar
novidades continuamente, que nos entregamos serena e despreocupadamente ao
ritmo das ave-marias e que, afinando e harmonizando o nosso coração com elas,
nos tornamos suavemente mais silenciosos, mais alegres e mais ricos por dentro.
Amor que se desprende
Mas as palavras do Evangelho que acabamos de ouvir
revelam-nos ainda um segundo aspecto mariano. Pertencem a esse grupo de
passagens aparentemente penosas em que Jesus parece repelir a sua Mãe. Esses
episódios começam quando o Senhor tem doze anos – “Não sabíeis que devo
ocupar-me das coisas de meu Pai?” (Lc 2, 49) –, continuam por ocasião das bodas
de Caná – “Mulher, que tenho eu a ver contigo?”(Jo 2, 4) – e quando os parentes
de Jesus vão procurá-lo – “Aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão,
minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 35) –, e chegam até o último momento, junto à
Cruz, quando o Senhor se desprende dEla por completo, tornando-a Mãe de um
outro 1 (Jo 19, 26), (1) O Apóstolo João: cfr. Jo 19, 26 (N. do T.).
No entanto, nenhuma dessas passagens é antimariana. É
precisamente diante da última negação aparente, a da Cruz, que percebemos o
grande “sim” oculto nelas: a confirmação daquilo que a maternidade plena
significa. Ser mãe quer dizer, por um lado, defender e cuidar, acolher e
oferecer um espaço para a intimidade e o recolhimento. Mas este é apenas um
aspecto. Assim como à concepção se segue o parto, ao acolhimento, cuidado e
proteção deve seguir-se o desprendimento: deixar o outro livre para que seja
ele mesmo, não segurá-lo junto de si, conservá-lo como se fosse coisa própria.
O amor consumado reconhece-se em que deixa o outro ser ele mesmo, não o retém,
antes solta-o, e se solta a si mesmo nesse desprendimento, levando à plenitude
a maternidade e o amor por meio dessa renúncia silenciosa.
Foi o que Maria fez. Ela aceitou que lhe tomassem o Filho,
renunciou a Ele, e assim levou à plenitude aquele seu sim do princípio, da
manhã da Anunciação. E fê-lo a tal ponto que se tornou Mãe de outro; mas foi
precisamente nesse outro que recebeu de volta o seu Senhor, Ela que é Mãe de
todos os cristãos.
Penso que temos especial necessidade de reaprender este
segundo aspecto. O conflito de gerações do nosso tempo, do qual voltamos a
tomar consciência com grande dramaticidade neste Ano Internacional da Criança,
tem em parte a sua origem em que não gostamos nada da imprevisível liberdade do
outro. Se temos um filho, este deve confirmar os nossos desejos de fazer
carreira, espelhar o nosso ser, representar em última análise a realização do
nosso eu. E assim não somos capazes de levar o amor à plenitude do
desprendimento, de realizar esse ato maior e mais puro de dedicação que é o
único capaz de trazer a unidade entre as pessoas.
Assim está Maria diante de nós: como aquele sim levado à
plenitude, que se faz inteiramente disponível para cuidar e para libertar, e
que dessa forma experimenta essa vitória do Amor que é a Verdade.
Os nossos predecessores construíram esta catedral como uma
igreja dedicada a Nossa Senhora e nela representaram, de certa forma, o elemento
mariano: o espaço que, entre as turbulências dos tempos, nos permite encontrar
abrigo e, com ele, a liberdade. Decidamo-nos, pois, a amar a Santíssima Virgem
e a responder ao íntimo chamado que nos dirige, para cumprirmos a missão que o
Evangelho nos dá: Eis que todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque
realizou em mim maravilhas aquele que é poderoso (Lc 1, 48-49).
Fonte: Pope
Benedict XVI waves as he arrives to bless the traditional Crib in St Peter's
Square at the Vatican Por Joseph Ratzinger - Meditação na última semana de
maio, na catedral de Nossa Senhora de Munique, 31.05.1979.
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