Entrando, o
anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. Perturbou-se ela com
estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação (Lc 1,
28-29). “O Senhor é contigo” é a terceira palavra da saudação do Anjo.
– Essa frase tem algum
significado especial?
– Muito. É uma
fórmula bíblica usada para os mandatos difíceis de cumprir. A proposta feita a
Maria excedia qualquer poder criado. O poder do Espírito vai operar nEla um
grande milagre, um mistério gigantesco, que contém algo que deveria comover os
cristãos. Sem dúvida, esse algo é imenso. Deus vai torná-la sua Mãe. O Verbo de
Deus une-se a Maria de uma maneira superior a tudo o que é humano. Chega-se
mesmo a dizer, em sentido espiritual, que Deus está engendrando a Si próprio e
sendo engendrado. Assim, adaptou-se a toda a natureza humana. Por isso, a frase
“o Senhor é contigo” é seguida de um complemento excelente: “Bendita és tu
entre as mulheres”, isto é, tu és única entre todas as mulheres. “Para que
também sejam abençoadas em ti as mulheres, como os homens serão abençoados em
teu Filho; melhor: umas e outros em ambos. Porque assim como por meio de uma
mulher e um homem entraram no mundo o pecado e a tristeza, assimagora por uma
mulher e um homem voltam a bênção e a alegria, e derramam-se sobre todos”
(Grego, Catena Áurea)
O Senhor é
convosco. Empregamos em português um verbo mais sólido e estável, em presente
do indicativo: “ser”; não um transitório “estar”.
– Foi assim, em toda a sua
dimensão, que a Virgem o entendeu naquele momento?
– De certa
maneira, sim. Por isso a sua perturbação, o seu temor diante da revelação de
tamanha generosidade divina. A criatura em face do sobrenatural estremece.
Soubesse Maria de alguma outra pessoa a quem se tivesse feito semelhante saudação,
nunca se teria deixado assustar pelo caráter extraordinário da saudação que
recebeu (Orígenes, séc. III). “Cheia de graça, o Senhor é contigo” é, afinal,
uma saudação que já insinua a grandeza do que se vai passar. Você e eu não nos
assustaríamos: desmaiaríamos!
– Não é
magnífico o panorama que avistamos do alto de uma montanha? Não é
impressionante visto das alturas? Por isso, os novatos podem ficar assustados,
ter vertigens, ficar com vontade de voltar à estrada. O maravilhoso, em
excesso, aturde-nos, impede-nos de pensar, faz-nos lamentar a incapacidade de
captar tanta beleza. O sol de frente deslumbra-nos. A presença do Anjo e a sua
saudação como que transportaram Maria para o alto. E eis o que impressiona: a
Virgem mantém o olhar fixo no Anjo; reflete, pensa, pondera. Não perde a
compostura. Depois, como o próprio Deus costuma fazer em suas manifestações
extraordinárias, o Anjo diz: “Não temas, Maria”. Chama-a pelo nome familiar;
cria um clima de naturalidade e confiança. “Não temas, Maria”. O temor
desaparece e a serenidade passa a ser plena.
O Senhor “é”
com Ela. Ser com Ela é mais que estar com Ela. O que é, é; ser é essencial, não
transitório. Em português, isso é muito claro: eu estou de pé, não sou de pé.
Se entendermos que Deus é com Ela, captaremos que Deus, absoluto e eterno, que
não depende de nada nem de ninguém, decidiu livre e amorosamente “ser com Ela”.
Assim, Deus já não é nem será nunca sem Ela. Não que o seu Ser dependa dEla.
Simplesmente não quer “ser” sem Ela. Por isso, é muito arriscado querer estar
unido a Deus “sem Ela”, uma vez que é impossível estar com Deus sem estar com
Ela. Acompanhou o raciocínio?
Em última
análise, este argumento ajuda a entender todo o mistério da Aliança de Deus com
Adão, com os patriarcas, Noé, Abraão…, com Israel, e finalmente com a
humanidade inteira no Sangue de Jesus Cristo. Deus compromete-se, amarra-se,
vincula livremente a sua liberdade aos homens. E é sempre fiel. Isso é Amor.
Deus vinculou-se eternamente à
Virgem Maria como Mãe do seu Verbo (seu Filho, oLogos divino, Segunda Pessoa da
Trindade). Por isso “é” com Ela. Eu seria um louco se não me agarrasse à Virgem
e a Ela me atasse indissoluvelmente para sempre.
Leiamos uma
passagem encantadora da Liturgia das Horas, que bem pode servir-nos, agora e
muitas outras vezes, à hora da oração mental: Alegra-te, cheia de graça, o
Senhor é contigo. E o que pode ser mais sublime que este gozo, ó Virgem Mãe? Ou
que coisa pode ser mais excelente que essa graça, que, vinda de Deus, só tu
obtiveste? Acaso é possível imaginar uma graça mais grata ou mais esplêndida?
Todas as outras não se podem comparar às maravilhas que se realizam em ti;
todas as outras são inferiores à tua graça; todas, mesmo as mais excelsas, são
secundárias e têm de uma claridade muito inferior. O Senhor é contigo. E quem
poderá competir contigo? Deus provém de ti; quem não te cederá passagem, quem
não te concederá com júbilo a primazia e a precedência? Por tudo isso,
contemplando as tuas excelsas prerrogativas, que se destacam sobre as de todas
as criaturas, aclamo-te com o máximo entusiasmo: Alegra-te, cheia de graça, o
Senhor é contigo. Pois és fonte de gozo não só para os homens, mas também para
os anjos do céu. Verdadeiramente, bendita és tu entre as mulheres, pois fizeste
da maldição de Eva uma bênção; pois fizeste que Adão, que jazia prostrado por
uma maldição, fosse abençoado por meio de ti. Verdadeiramente, bendita és tu
entre as mulheres, pois por meio de ti a bênção do Pai brilhou para os homens e
os libertou da antiga maldição. Verdadeiramente, bendita és tu entre as
mulheres, pois por meio de ti encontram a salvação teus progenitores; pois tu
engendraste o Salvador que lhes concederá a salvação eterna. Verdadeiramente,
bendita és tu entre as mulheres, pois sem ajuda de varão deste à luz aquele
fruto que é bênção para todo o mundo, que redimiu da maldição que não produzia
senão espinhos. Verdadeiramente, bendita és tu entre as mulheres, pois apesar
de seres uma mulher, criatura de Deus como todas as outras, chegaste a ser, de
verdade, Mãe de Deus. Pois Aquele que nascerá de ti é, com toda verdade, o Deus
feito homem, e, portanto, com toda a justiça e com toda a razão, és chamada Mãe
de Deus, pois de verdade dás à luz o próprio Deus. Tu tens em teu seio o
próprio Deus, feito homem nas tuas entranhas, que, como um esposo, sairá de ti
para conceder a todos os homens o gozo e a luz divinas. Deus pôs em ti, ó
Virgem, a sua tenda como em um céu puro e resplandecente. Sairá de ti como o
esposo da sua alcova e, imitando o sol, percorrerá na sua vida o caminho da
futura salvação para todos os viventes, e, estendendo-se de um extremo ao outro
do céu, encherá de calor divino e vivificante todas as cosas.
(São Sofrônio, bispo, Sermão 2,
na Anunciação da Santíssima Virgem, 21-22. 26: PG 87, 3, 3242. 3250)
UM OLHAR NO ESPELHO
Convém agora
que olhemos no espelho que Deus nos deu para conhecer melhor o que acontece na
nossa vida interior quando estamos em graça. O espelho dos espelhos é
obviamente Cristo. Mas Maria reflete-o perfeitamente e o que se passou com Ela
ocorrerá analogamente a cada cristão que viva da fé pelo amor. Estamos com Deus
e em Deus. Deus habita na nossa alma e, pela alma, no nosso corpo, como num
templo. São Paulo recorda-nos: “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do
Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso
mesmo, já não vos pertenceis?” (1Cor 6, 19); “Se alguém destruir o templo de
Deus, Deus o destruirá. Porque o templode Deus é sagrado – e isto sois vós” (1
Cor 3, 17); “O Espírito de Deus habita em vós” (Rom 8, 9).
– E Deus como está em você e em
mim?
– Com certeza, não está de braços
cruzados, perdendo o tempo. É Ato puro, dinamismo inexorável, energia criadora,
poder imenso. Está em você – está em mim – com toda a sua virtude onipotente,
com toda a sua grandeza. Jesus dizia a alguns judeus que O perseguiam por fazer
milagres no sábado: O meu Pai sempre trabalha, e eu também trabalho (Jo 5, 17).
Deus não perde o tempo. Uma vez que recebemos a graça de Deus, pelo Batismo ou
pela Confissão sacramental, a Trindade começa a trabalhar, em silêncio – que é
o modo, digamos, predileto de Deus – na alma renascida. Ainda que a pessoa não
o perceba, como é o caso das crianças que receberam o Batismo logo depois de
nascerem. Como devemos agradecer pelos anos que, sem o uso da razão,
desfrutamos da presença ativa de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo!
Ele moldava-nos, preparava-nos para o momento em que perceberíamos que algo
grandioso ocorreu. Ocorreu e ainda ocorre hoje, quando temos idade para
refletir, agradecer, tirar conclusões e propósitos. O que Deus não estará
tramando em você e para você? Que não fará quando nos dispusermos a
corresponder com plena fidelidade aos impulsos da sua graça? Coisas
surpreendentes, sem dúvida, porque Deus é assombroso. Não duvide: Deus quer
fazer algo grande em você e de você. Quer conduzi-lo aos cumes mais altos do
Amor, onde tudo é paz, ar puro, serenidade, sossego, ainda que suponha
sacrifícios, trabalhos, e dor. Mas nos cumes altos onde Deus atua intensamente
prestamos mais atenção ao Amor do que à dor. Como na gruta de Belém, onde
ninguém se queixava do frio, da umidade, dos mosquitos ou outros bichos
dolugar. Todas as atenções se voltavam para Deus-Menino. A gruta de Belém foi
um dos discretíssimos cumes do Amor.
CORRESPONDER À GRAÇA
E o que Deus
faz em você? O que espera de você? Pergunte-o a Ele mesmo! Melhor: pergunte-o à
Mãe de Deus. E aproveite para deter-se nEla. Que conclusões você tira ao saber
que nEla a graça de Deus atua de modo pleno? Fiat! Faça-se em mim segundo a tua
palavra. É uma disponibilidade absoluta, incondicional, sem reservas. “Seja
feita a vossa vontade assim na terra como no céu!”
Por que essa
resistência a desejar que se faça em tudo a Vontade de Deus? Por que, se ela é
benfazeja, se apenas quer o bem, por ser a Suma Bondade, o Amor que faz tudo
por Amor? O papa João Paulo II clamava com seu coração vibrante, sempre jovem,
ao começar seu pontificado: “Irmãos e Irmãs: não tenhais medo de acolher Cristo
e de aceitar o Seu poder! E ajudai o Papa e todos aqueles que querem servir a
Cristo e, com o poder de Cristo, servir o homem e a humanidade inteira! Não,
não tenhais medo! Antes, procurai abrir, melhor, escancarar as portas a Cristo!
Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas econômicos assim
como os políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do progresso!
Não tenhais medo! Cristo sabe bem «o que é que está dentro do homem». Somente
Ele o sabe!” (João Paulo II, Hom., 22-X-78.) Ecoam novamente, com um frescor
maravilhoso, as palavras do Senhor: Sou eu, não temais. Por que este medo,
gente de pouca fé? (cf. Mt 14, 27; Mc 6, 50; Lc 24, 36; Jo 6, 20, Mt 8, 26) Por
que temer um Deus que nos deu tudo: a existência, a vida, o pensamento, os bens
materiais, a fé, a graça, e ainda por cima, nos deu a Si próprio? O que temer?
Há algo realmente valioso que possamos perderabrindo de par em par as portas a
Cristo e à sua graça?
O que nos
acontecerá se abrirmos as portas a Cristo, se nos decidirmos a corresponder à
graça de Deus? Uma coisa excelente: Cristo entrará, limpar-nos-á, renovará a
nossa vida; o Espírito Santo, o Amor em Pessoa, encherá o nosso coração. O
único risco é passarmos a estar verdadeiramente alegres sempre. “Precisamos
deixar que o Senhor intervenha em nossas vidas e que intervenha confiadamente,
sem encontrar obstáculos nem recantos obscuros. Nós, os homens, tendemos a
defender-nos, a apegar-nos ao nosso egoísmo. Sempre tentamos ser reis, nem que
seja do reino da nossa miséria. Devemos compreender, através desta
consideração, o motivo pelo qual temos necessidade de recorrer a Jesus: é para
que Ele nos torne verdadeiramente livres, e desta forma possamos servir a Deus
e a todos os homens” (São Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, n. 17).
E o que acontece quando você se
confessa? Quando passamos a conversar com Deus sobre as nossas coisas? Quando
nos esforçamos por ser absolutamente sincero? O que acontecerá! Uma grande luz
vai brotar do nosso coração! Um sorriso com que nunca sonhamos aparecerá nos
nossos lábios: um sorriso eterno, sereno, maravilhoso, que trará a paz para à
vida interior e ao ambiente que nos cerca.
E se você
ainda tiver medo, recorra a Maria. Ela é o caminho mais curto, mais amável, o
mais grato para conseguir amar verdadeiramente a amabilíssima Vontade de Deus.
E você não me vá ter medo da sua Mãe! Ela sabe como às vezes custa ser dócil
aos toques do Paráclito. Custou-lhe passar umas horas eternas e terríveis no
Calvário, precedidas de uma longa vida de sacrifício, de pensar nos outros e
nunca em si mesma. Uma espada de sete gumes atravessou a sua alma. Ela tinha
consciência disso quando ouviu do Anjo que ia ser a Mãe do Messias. Mas não
pensou duas vezes. Alegre-se você também, pois Deus lhe deu muitas graças. O
Senhor é com você, diria a Virgem, com você!
– Como é possível que seja
comigo, dessa maneira tão íntima? Quem sou eu? O que fiz para que o Senhor seja
comigo, para que repare em mim, para que espere algo de mim?
A alma
estremece e o corpo treme diante da grandeza do divino. Mas depois vem a paz:
Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Maria sabia o que
dizia. “Como será isso…?” Qual é o meu papel? Uma espada transpassará a minha
alma? Mas quem pensa nisso agora? Agora é momento para pensar na generosidade
de Deus, na chamada eterna, no poder que me outorga, na dignidade que me
confere, no horizonte maravilhoso que se abre para mim por toda a eternidade.
Eu, filho de Deus, templo de Deus, chamado à santidade?
Se tivesse
sido mesquinha, talvez Maria dissesse: “Isso é pesado demais”. Não passo de uma
escrava do Senhor. Escrava, sim. Mas, Mãe? Isso é inaudito. Isso é
biologicamente impossível. Quem vai acreditar? Não, não; sou uma humilde
criatura; prefiro ser a escrava do Senhor. Não me venham complicar a vida. Não
aguento mais. (Sem palavras:) Que não se faça a vontade de Deus!… Essa seria a
humildade hipócrita, falsa; a preguiça rematada, o egoísmo hermético.
A autêntica
humildade responde: “Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.
A nossa Mãe tem humildade, valentia e fé: Faça-se a vontade de Deus! A mais
humilde das criaturas é agora a Rainha de toda a criação. Porque não rejeitou a
graça; porque correspondeu com uma fidelidade assombrosa. Não perca Maria de
vista, repare bem na qualidade da sua resposta. Esteja com Maria. Ate-se a
Maria. Deus atou-se a Ela numa amorosa aliança. Deus é com Ela. Deus é com
você. E você com Ela e com o seu Filho. E com o Pai e o Espírito Santo. Amém.
Autor: Pe. Antonio Orozco Delclos
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