Conhecemos
muito pouco sobre a adolescência de Maria. E tudo nos é dado pelos Evangelhos
Apócrifos. O que nos provém dos Evangelhos Canônicos refere-se a seu encontro
com o Anjo Gabriel.
Distinguimos um fato que nos basta para adivinhar a sequência: trata-se
do voto de virgindade que fizera e que ela refere ao Anjo, no início de sua
visita, com uma entonação que pode parecer um pouco estranha.
Isso indica
um propósito amadurecido. E, se pudermos supor como esse seu desígnio é
verdadeiro, genuíno, apesar dos seus quinze anos, devemos imaginar que ela era
criança precoce tendo, bem cedo, sondado a existência, e percorrido, com sábia
maturidade, as dimensões da vida.
Para julgar esse propósito de se manter
virgem e compreender a agudeza de espírito, convém lembrar a mentalidade dos
Judeus em relação à virgindade.
A primeira
lei do Criador dirigida a todos os seres viventes era “Crescei e multiplicai-vos.”1
E o primeiro instinto do povo escolhido (que se confundia com o seu primeiro e
principal dever) era o de se comportar como povo, garantindo a sobrevivência.
A mulher
judia não conhece maior maldição do que a esterilidade, sinal do desprezo de
Deus por ela. E, como não é possível conceber uma nova geração sem a carne, o
ser que não pode procriar é um ser diminuído, desprezado, privado da
imortalidade temporal, tendo fracassado em sua missão.
Nós temos
dificuldade em compreender esta ideia mosaica, este modo de agir segundo a
Antiga Lei, pois estamos impregnados do Cristianismo e nele não podemos deixar
de projetar novas luzes sobre antigas sombras.
O ato de se
consagrar à virgindade dava a uma jovem judia a chance de ser escolhida para
ser a mãe do Messias. As Escrituras demonstravam que o Messias nasceria de uma
virgem. Porém, a verdade histórica não era essa. O texto de Isaías “O Senhor vos dará um sinal:
eis que uma almahn (=virgem) conceberá, e dará à luz um filho, e o seu nome
será Emanuel” (Is 7,14), segundo o texto hebraico o termo refere-se a uma
donzela, mesmo casada. Mas pelo texto em grego o termo usado é parthenos
(=virgem), pela tradução grega da Septuaginta 2.
Além do mais,
se a Virgem Maria conhecesse a origem virginal, a pergunta que fez ao Anjo não
conteria um sentido pleno: “Como vai ser isso, se eu não conheço homem algum?”
(Lc 1,34) Ela teria se expressado de forma contrária: “Isso não será possível,
porque eu não conheço homem!”
Guardando a
virgindade no casamento, a Virgem se excluia, voluntariamente, segundo as
concepções comuns, da dignidade de ser a mãe do Messias. Tal ponto de vista, é
concorde com o caráter de Maria, sua extrema humildade, e a escolha deliberada
de se colocar, sempre, em último lugar. E nós podemos adivinhar, então, que, se
Deus a escolheu, ela nada havia feito para provocar ou estimular essa escolha.
A virgindade à imagem
do Deus único
O que é a virgindade?
Seria mais
do que apenas a abstenção das relações sexuais. Se ela fosse constituída apenas
por essa abstenção, seria suspeita e poderia se fundamentar sobre uma ideia de
mácula, ligada ao próprio uso da carne. Presume-se que, na mentalidade judaica,
tenha havido alguma ideia nesse sentido, semelhante àquela da mentalidade
primitiva. Mas não se encontra nenhum entendimento de condenação do casamento
humano de Maria, que honrou com sua presença as núpcias de Cana.
Ela deveria
conceber a virgindade como o mais vivo sinal de total consagração a Deus
criador e ao seu espírito. Logo, o que existe de mais puro na tradição judaica
é que Israel tinha Deus como o Ser que estava acima de toda a natureza; um Deus
único, transcendente, irrepresentável, que não se pode designar com um simples
nome.
A Virgem
sabia, igualmente, que nós fomos criados, homens e mulheres, à imagem e à
semelhança de Deus. A experiência que ela havia tido de sua diferença em relação
às outras mulheres em nada a engrandeceu, mas fez com que crescesse em seu
coração um apelo à solidão.
E quando ela
percebeu que era uma mulher, e compreendeu a honrosa possibilidade de ser mãe,
ideou renunciar à maternidade, para unir-se aos outros e a Deus. Como sugere o
pensamento judaico sobre a oblação, a oferenda das primícias, o melhor uso que
se pode fazer da melhor das coisas, é sacrificá-la. José e o voto de
virgindade de Maria
É preciso
compreender que, numa sociedade em que a virgindade não era nem conhecida nem
salvaguardada (pois nenhuma instituição a preservava, modelo algum a
consagrava), o voto de Maria só poderia ser efetivado no casamento. O matrimônio tornara-se, então, uma
necessidade: ela só poderia cumprir o desígnio escolhido, na realização de suas
núpcias: somente o casamento poderia constituí-la virgem.
Porém, como
este enlace não podia ser contra a sua vocação virginal, Maria supunha que
aquele que lhe fora designado como esposo, pela família, compreenderia e
respeitaria o seu ideal. Este ato de abandono era, então, igualmente, um ato de
fé.
Jean Guitton
nos diz: “Eu presumo que os dois, José e Maria, eram jovens e plenamente
conscientes, habitando o presente com inteira disponibilidade, sem conhecer o
extraordinário futuro que os aguardava. Imagino José jovem, forte, silvestre e
vivaz, assim como o pastor libanês descrito no Cântico dos Cânticos.”3
Por que ele
não teria amado? Nem obtido o retorno do amor? (...) Sem dúvida, José tinha o
sentimento de afinidade com aquela jovem, e sentia a imensa superioridade dela
sobre ele. O amor do homem é modelado conforme o amor da mulher, que é a
silenciosa educadora do elã viril. Maria purifica e virginiza José, assim como
virginizaria tantos jovens, com o seu sorriso, e a estirpe sacerdotal, que lhe
deve a conservação do estado da virgindade viril, aqui na terra.
José e Maria
haviam renunciado à paternidade e à maternidade; eles não sabiam o que os
cercava, em termos de fecundidade nesse sacrifício; eles não tinham como
pressentir o Inominado, o Incompreensível que sobreviria, serenamente, entre os
dois.
E, no
entanto, a união entre José e Maria, não se assemelhava a uma união fechada em
si mesma, como se fosse uma clausura, um claustro para duas pessoas ou para
uma, somente. Esta união seria dominada pela esperança. Devia haver entre os
dois, o pressentimento de que um mundo novo nasceria da harmonia e da
concordância entre ambos.” A Virgindade.
Os dois
primeiros capítulos dos Evangelhos de São Mateus e de São Lucas afirmam
claramente que Maria concebeu Jesus sem intervenção de varão: “o que nela foi
concebido vem do Espírito Santo”, disse o anjo a São José (Mt 1, 20); e a
Maria, que pergunta “Como se fará isso, pois não conheço homem?”, o anjo lhe
responde: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te
envolverá com a sua sombra...” (Lc 1, 34-35).
Por outro
lado, o fato de Jesus na Cruz entregar sua Mãe aos cuidados de São João supõe
que a Virgem não tinha outros filhos. Que os Evangelhos mencionem em certos
trechos os “irmãos de Jesus” pode explicar-se pelo uso do termo “irmãos” em
hebraico com o sentido de parentes próximos (Gn. 13, 8; etc.).
Outra hipótese seria supor que São José tivesse filhos de um
matrimônio anterior. Também podemos considerar que o termo “irmãos” foi usado
no sentido de membro do grupo de crentes, tal como é comum no Novo Testamento
(cf. At 1, 15). A igreja sempre acreditou na virgindade de Maria, e a chama de
“sempre virgem”4 antes, durante e depois do parto.
A concepção virginal de Jesus deve ser
entendida como obra do poder de Deus “porque a Deus nenhuma coisa é impossível”
(Lc 1,37). Foge a toda compreensão e poder humanos. Não tem relação alguma com
as representações mitológicas pagãs em que um deus se une a uma mulher
realizando o papel do homem, como nos mitos gregos.
A concepção
virginal de Jesus é uma obra divina no seio de Maria similar à Criação. Isso é
impossível de aceitar para o não crente, como era para os judeus e pagãos,
entre os quais se inventou histórias grosseiras acerca da concepção de Jesus,
como a que a atribui a um soldado romano chamado Pantheras. Na verdade, esse
personagem é uma ficção literária, sobre o qual se inventou uma lenda para
zombar dos cristãos. Partindo do ponto de vista da ciência histórica e
filológica, o nome Pantheras (ou Pandera) é uma corruptela que parodia a
palavra grega parthénos (=virgem). As pessoas, que utilizavam o grego como
língua de comunicação em grande parte do império romano do oriente, ouviam os
cristãos falarem de Jesus como o Filho da Virgem (huiós parthénou), e quando
queriam zombar deles, chamavam-no de “filho de Pantheras”.5 Tais histórias
testemunham que a Igreja sustentava a virgindade de Maria, ainda que parecesse
impossível.
O fato de Jesus ter sido concebido
virginalmente é um sinal de que Ele é verdadeiramente Filho de Deus por
natureza — daí que não tenha um pai humano — e, ao mesmo tempo, verdadeiro
homem nascido de mulher (Gl 4,4). Nas passagens evangélicas, mostra-se a
absoluta iniciativa de Deus na história humana para o advento da Salvação. E
também que esta se insere na própria história, como mostram as genealogias de
Jesus. Pode-se compreender melhor a
Jesus, concebido pelo Espírito Santo e sem intervenção de homem, como o novo
Adão que inaugura uma nova criação. A ela pertence o homem novo redimido por
Cristo (1Cor 15,47; Jb 3,34).
A
virgindade de Maria é sinal de sua fé sem vacilações e de sua entrega plena à
vontade de Deus. Inclusive diz-se que, por essa fé, Maria concebe a Cristo
antes em sua mente que em seu ventre, e que “mais bem-aventurada, pois, foi
Maria em receber Cristo pela fé do que em conceber a carne de Cristo. A
consanguinidade materna, de nada teria servido a Maria, se Ela não se tivesse
sentido mais feliz em acolher Cristo no seu Coração, que no seu seio”. 6
Sendo virgem e mãe, Maria é também figura da Igreja e sua mais perfeita
realização.
Papa destaca valor da
virgindade consagrada
Bento
XVI recorda que a virgindade consagrada “uma expressão particular de vida
consagrada, que refloresceu na Igreja depois do Concílio Vaticano II, mas cujas
raízes são antigas”. Radicam “nos inícios da vida evangélica quando, como
novidade inaudita, o coração de algumas mulheres começou a abrir-se ao desejo
da virgindade consagrada: ou seja, ao desejo de dar a Deus todo o próprio ser.
Funda-se num simples convite evangélico – ‘quem puder compreender, que
compreenda’ – e no conselho paulino sobre a virgindade pelo Reino de Deus. E
contudo nele ressoa todo o mistério cristão”.
Bento XVI
nos ensina que, quando surgiu, este “carisma não se configurava com
particulares modalidades de vida, mas foi-se depois institucionalizando, pouco
a pouco, até chegar a uma verdadeira consagração pública e solene, conferido
pelo Bispo mediante um sugestivo rito litúrgico que fazia da mulher consagrada
a sponsa Christi, imagem da Igreja esposa”.
Por Alexandre Martins, cm.
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1- (Gn 1,22) Na Versão original do grego, lê-se “sede
fecundos, multiplicai-vos”.
2- versão da Bíblia hebraica para
o grego koiné, traduzida entre o terceiro e o primeiro século a.C. em
Alexandria (Egito). É a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego,
língua franca do Mediterrâneo oriental pelo tempo de Alexandre, o Grande. A
tradução ficou conhecida como a Versão dos Setenta (ou Septuaginta, palavra
latina que significa “setenta”), pois setenta e dois rabinos trabalharam nela
e, segundo a história, teriam completado a tradução em setenta e dois dias. A
Septuaginta foi usada como base para diversas traduções da Bíblia. A
Septuaginta inclui alguns livros não encontrados na bíblia hebraica. Muitas
bíblias da Reforma seguem o cânone judaico e excluem estes livros adicionais.
Entretanto, católicos romanos incluem alguns destes livros em seu cânon e as
Igrejas ortodoxas usam todos os livros conforme a Septuaginta. De grande
significado para muitos cristãos e estudiosos da Bíblia, é citada no Novo
Testamento e pelos Padres da Igreja. Recentes estudos acadêmicos troxeram um
novo interesse sobre o tema nos estudos judaicos. Alguns dos pergaminhos do Mar
Morto sugerem que o texto hebraico pode ter tido outras fontes que não apenas
aquelas que formaram o texto massorético. Em vários casos, estes novos textos
encontrados estão de acordo com a LXX.
Fontes:
3- GUITTON,
Jean, La Vierge Marie, pág. 30, Editions Montaigne.
4- Constituição Dogmática Lumen Gentium, 52
5- VARO, Francisco. Rabí Jesús de Nazaret, B.A.C., Madrid,
2005, págs. 212-219.
6- s. Agostinho de Hipona, citado pela Exortação Apostólica
“Signum Magnum” de Paulo VI, 10.
7- Disponível em
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=60134. Acesso em
02/03/2011
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